Mulheres negras, mães e presas ao ciclo de violência: Confira o perfil da mulher vítima de violência no Ceará
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No Ceará, a mulher vítima de violência doméstica tem um perfil bem delineado pelos números do Núcleo de Defesa da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Ceará (DPCE). A maioria dessas mulheres é negra (82,1%) e estão inseridas no mercado de trabalho informal (43,38%), embora muitas enfrentem desemprego (10,50%) ou atuem como donas de casa (19,45%). Desde o ano de 2021 até outubro de 2024, os dados coletados pelo Núcleo destacam que essas mulheres convivem com a violência em ambientes que deveriam ser seguros: as próprias casas.
Essas mulheres, muitas vezes responsáveis pelo cuidado do lar e dos filhos, carregam histórias marcadas pela violência doméstica, cujos traços, visíveis ou não, afetam suas vidas. A defensora pública Ana Kelly Nântua, titular do Nudem, explica que o Núcleo oferece suporte integral às mulheres vítimas de violência. “Nosso trabalho vai além do atendimento jurídico. Proporcionamos às mulheres acolhimento emocional e social para que elas tenham condições reais de romper com o ciclo de violência e reconstruir suas vidas”, pontua.
Entre as muitas histórias acompanhadas pelo Nudem, está a de uma mulher que, desde 2018, vivia em situação de violência psicológica no relacionamento. Sinais que ela demorou a perceber, embora gerem feridas na alma. Durante a gravidez e após o nascimento do filho, ela começou a enfrentar negligência por parte do cônjuge, que frequentemente desmerecia suas conquistas e a fazia questionar sua própria percepção da realidade. “Eram coisas sutis, mas dolorosas. Ele ficava ofendido com minhas conquistas e sempre dizia que eu era louca ou que estava exagerando nas cobranças mínimas que fazia. Cheguei a me questionar se realmente estava cobrando demais”, relata a assistida.
Com o apoio de uma amiga, ela procurou a Casa da Mulher Brasileira, onde foi encaminhada ao Nudem. Após acompanhamento psicológico e jurídico, ela conseguiu compreender que estava em um ciclo de violência psicológica e decidiu lutar pela guarda unilateral do filho. Também conseguiu medida protetiva, garantindo maior segurança para si e para a criança.
“Nunca pensei que fosse capaz de transformar uma dor em luta para despertar a força em outras mulheres com minha história. Hoje, com o auxílio da Defensoria, consigo seguir minha vida sem precisar ter contato com quem me machucou”, finaliza.
Quando o lar vira medo
De cada dez mulheres que procuram ajuda, quase 97% sofreram violência dentro de casa. O espaço que deveria ser refúgio é, por vezes, palco de agressões psicológicas, físicas e emocionais. Para 79% dessas mulheres, o comportamento agressivo do parceiro é o gatilho principal. Mas há outros fatores que intensificam o ciclo: separações conturbadas (64%), ciúmes (32%) e questões como dependência emocional e financeira, de acordo com os dados coletados.
“Quando a gente começa a conversar sobre o próprio relacionamento, elas identificam que estão sob violência psicológica”, explica Ursula Góes, psicóloga do Nudem. Segundo ela, muitas mulheres chegam ao Núcleo acreditando que nunca sofreram violência. “Elas dizem: ‘ele nunca me bateu’, mas a violência psicológica é o primeiro passo no ciclo da violência física. Ele ameaça, humilha, vigia, impede de estudar ou trabalhar, distorce fatos. Tudo isso gera dúvidas até na própria mulher”, exemplifica.
Esse tipo de violência é devastador. A especialista também aponta que 96,7% das mulheres atendidas pelo Núcleo relatam episódios de condutas que são violência psicológica. “O ciclo de violência não é contínuo; ele é espaçado e vai se intensificando com o tempo”, aponta.
Mais de 85% das mulheres atendidas têm filhos. E 41% dessas crianças assistem aos episódios de violência, carregando cicatrizes que as acompanharão para a vida adulta.
Quem são os agressores?
A maior parte dos agressores é composta por pessoas que já tiveram uma relação íntima com a vítima: 51,9% são ex-companheiros, 21,4% cônjuges e 12,3% ex-cônjuges. Os dados apontam que 89,1% desses homens não possuem arma de fogo. Ainda assim, o controle e as ameaças continuam sendo ferramentas comuns de intimidação. “Muitas vezes, esses agressores utilizam outras formas de poder para exercer controle, como ameaças veladas ou isolamento social da vítima, o que reforça o ambiente de opressão e medo”, analisa Ursula.
Os dados também revelam que 31,3% dos agressores não foram expostos a episódios de violência na infância. Isso evidencia que, embora a vivência de violência possa ser um fator relevante, o comportamento agressivo nem sempre está atrelado a experiências anteriores.
A atuação da Defensoria no enfrentamento à violência
Lidar com as diversas dependências que mantêm as mulheres presas a relacionamentos abusivos, como dependências emocionais, financeiras e familiares, é um dos maiores desafios enfrentados pelo Nudem. “Mostrar a essas mulheres que há um amparo, que existe uma rede de apoio capaz de ajudá-las a romper com esse ciclo de violência, é uma das principais missões do Núcleo”, aponta Ana Kelly.
Outro obstáculo apontado pela defensora é a falta de conhecimento sobre os próprios direitos. “Muitas mulheres não sabem identificar que estão sofrendo violência psicológica ou moral. Elas chegam ao Nudem relatando violência física, mas, durante o atendimento, percebem que sofreram diversas formas de abuso. Nosso papel é educar e informar para que elas se reconheçam como vítimas e saibam que podem buscar ajuda”, reforça.
Além disso, a defensora destaca o trabalho extrajudicial realizado, que inclui ações educativas para garantir apoio psicológico contínuo. O Núcleo conta com uma equipe composta por defensoras públicas, psicólogas e assistentes sociais, oferecendo acolhimento jurídico e suporte emocional. “Não atuamos apenas judicialmente, mas também no acolhimento emocional e no encaminhamento dessas mulheres para que recebam o suporte necessário, seja na assistência social ou na saúde mental”, completa.
Como procurar ajuda?
Mulheres em situação de violência podem buscar apoio em diversas frentes. O primeiro passo é procurar uma Delegacia de Defesa da Mulher, que atende casos de violência sexual, psicológica e física. Na ausência de uma delegacia especializada, é possível registrar um boletim de ocorrência na delegacia mais próxima ou, em algumas situações, pela Delegacia Eletrônica.
Outra alternativa é entrar em contato com a Central de Atendimento à Mulher, pelo número 180, que funciona 24 horas por dia e oferece orientações, além de encaminhar as vítimas para os serviços mais próximos.
O Nudem em Fortaleza está localizado na Casa da Mulher Brasileira. NAs cidades do interior, também há atuação.
SERVIÇO
Nudem Fortaleza
Tabuleiro do Norte, s/n, Couto Fernandes (dentro da Casa da Mulher Brasileira)
(85) 3108.2986 | 9.8949.9090 | 9.8650.4003 | 9.9856.6820
Nudem Caucaia
Rua 15 de Outubro, 1310, Novo Pabussu (sede da Defensoria Pública)
(85) 3194.5068 | 5069 (ligação)