O processo histórico de reconhecimento das terras indígenas e o polo industrial de Caucaia

Um parecer técnico da Funai, apresentado à Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia, confirma a sobreposição da poligonal do projeto do Cipp com a poligonal de Habitação Permanente dos Anacés

Por jangada.online em

6 de dezembro de 2021 às 22:22
Imagem Ilustrativa Complexo do Pec[em. FOTO: reprodução.

A Assembleia Legislativa do Ceará (Alce) aprovou em novembro a cessão de parte de uma terra onde vivem indígenas do povo Anacé, para que o município de Caucaia possa implantar um polo do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (Cipp).

Improvisada e com consequências gravíssimas – especialmente para os povos originários, que serão impactados diretamente em atividades de autossustento e nas relações microeconômicas fundamentais para a vida social local –, a mensagem que cede o terreno à Prefeitura de Caucaia para a instalação do polo industrial conseguiu ser aprovada em um piscar de olhos por maioria absoluta da Assembleia Legislativa. Afinal, do jeito falacioso em que a matéria foi apresentada pelo Governador Camilo Santana, quem se negasse a aprová-la correria um risco de ser acusado de votar contra o desenvolvimento econômico do Estado.

 

Driblando a Justiça Federal

Por anos, a Funai e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, não legalizaram as terras do povo Anacé e muitas outras por uma questão técnica. Até abril de 2020, o sistema fundiário do governo continha limites de todas as terras indígenas em demarcação, regularizadas ou não. Caso alguém abrisse um registro nelas, o bloqueio era automático.

Desde a Instrução Normativa nº 9, de 2020 da Funai, porém, apenas territórios regularizados constam como válidos no sistema do Incra. Com as novas regras, apropriação e cessão de terras em hectares indígenas não demarcados acabam ganhando o status de “legal”.

O Governo do Ceará ancorou a cessão do terreno em uma Normativa que vem sendo alvo de fortes críticas Brasil afora por justamente criar insegurança jurídica, abrir espaço para os conflitos fundiários, para os danos ambientais e para a grilagem de terras.

Um parecer técnico produzido a partir de dados georreferenciados da própria Funai, apresentado à Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia, confirma a sobreposição da poligonal do projeto do Cipp com a poligonal de Habitação Permanente dos Anacés.

Nos territórios escolhidos para a implantação desses grandes empreendimentos com potencial poluidor, a perspectiva da geração de emprego e renda em contextos sociais vulnerabilizados pela pobreza historicamente construída faz com que sejam percebidos apenas os impactos econômicos positivos advindos da instalação dessas indústrias. Mas, na verdade, como estamos vendo bem desde o início dos anos 1990 com a implantação do CIPP, esses empreendimentos resultam em sérios riscos de doenças e agravos à saúde da população, interfere na organização comunitária, gera o acirramento de desigualdades sociais, impacta o ambiente e estimula políticas governamentais direcionadas apenas ao favorecimento das grandes corporações.

Avançar por terras indígenas para viabilizar um empreendimento faraônico no ano eleitoral, usando como desculpa o desenvolvimento econômico – quando sabemos que os benefícios desse Complexo serão distribuídos de forma totalmente heterogênea entre os habitantes, não é o que mais espanta. O pior é a desfaçatez ao fazê-lo. Parece até que a preocupação em “criar um projeto que eleve o PIB” brotou de repente, exatamente a um ano da eleição, e que ela vai sumir em dezembro de 2022, quando entra em atividade o complexo.

O Governador Camilo Santana, o mesmo que meses atrás jurava aos correspondentes estrangeiros que “o Governo do Ceará é um exemplo na gestão ambiental”, garantiu que não faria “qualquer aventura” no meio ambiente minutos depois de desarranjar ainda mais as proteções dos povos originários do Ceará. O deputado Júlio César Filho (Cidadania), líder do governo na Assembleia, é ainda mais irresponsável. Diz que “só após aprovação formal do Governo Federal é que se poderá falar em terreno indígena (sic)”

Do ponto de vista constitucional, entretanto, essa afirmação é falsa. Somente quem desconhece o direito indígena brasileiro pode fazer uma afirmação tão tacanha.

No Brasil, a Constituição Federal reconheceu aos indígenas um direito declarado sobre suas terras de ocupação tradicional e isso significa que esse direito independe da conclusão do processo administrativo de demarcação, porque ele é preexistente, anterior a qualquer outro.

Além disso, todo empreendimento para exploração comercial em terras indígenas é nulo. Como o usufruto é exclusivo dos indígenas, o projeto de extensão do Cipp está todo eivado de ilicitudes e ilegalidades.

A Justiça pode ser acionada para suspender os efeitos práticos da cessão do terreno até finalização de estudos mais conclusivos da Funai sobre a real extensão das terras indígenas do povo Anacé.

 

Por: Felipe Martins – Jurista e Ativista de Direitos Humanos

 

 

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